O sequenciamento do genoma do parasita Leishmania amazonensis,
totalmente realizado por pesquisadores brasileiros – sob coordenação da
professora Diana Bahia, do Departamento de Biologia Geral da UFMG –, pode
ajudar a desvendar mecanismos pelos quais alguns microrganismos escapam da
resposta imune do hospedeiro.
Publicado
na revista DNA Research, o artigo que descreve o trabalho aponta campos com
vastas possibilidades de investigação em futuro próximo. “A pesquisa mais abre
portas para uma série de entendimentos do que soluciona questões, mas tem
importantes impactos dos pontos de vista médico e biológico”, destaca Diana
Bahia.
Causadora de lesão cutânea difusa, forma mais grave e que não tem
cura, de alta prevalência na América Latina e em especial na região amazônica
do Brasil, a Leishmania
amazonensis tem
traços comuns com a Leishmania
mexicana, e ambas diferem muito dos tipos mais comuns desse gênero, que já
tiveram seu genoma elucidado.
Chamou a
atenção da equipe de 16 pesquisadores que compõem o grupo a presença dos
parasitas em vacúolos (espécies de bolsa) de grandes dimensões dentro dos
macrófagos, células de defesa do sistema imune do hospedeiro. “Ele fica
protegido e vai se replicando”, descreve a professora.
Segundo ela, a intenção foi descobrir se de dentro do macrófago o
parasita secreta fatores proteicos que justifiquem a biogênese desse vacúolo
largo e, consequentemente, a evasão da resposta imune. “O fato é que as
respostas imunes clássicas que matariam outras espécies de leishmania não
funcionam para a L.
amazonensis”, explica Diana, lembrando que tal hipótese, por si, justificaria
a decisão de sequenciar mais um genoma desse gênero.
Proteína de superfície
Contudo, outras evidências aumentaram o interesse pelo estudo. “Percebemos que
a L.
amazonensis tem
cópias extras de uma proteína de superfície chamada amastina, identificada e
caracterizada, inicialmente, pela professora Santuza Teixeira, da UFMG”, conta.
Superfamília de proteínas composta por vários membros, as amastinas são
encontradas apenas em tripanossomatídeos – grupo que inclui todas as
leishmanias e os tripanossomas –, sendo bem mais abundante nas primeiras.
Em trabalho de quatro anos, utilizando prioritariamente
ferramentas de bioinformática, o grupo buscou encontrar algo que diferenciasse
a L.
amazonensis das
demais, já que as leishmanias são muito parecidas no âmbito genômico.
Observaram que elas têm basicamente os mesmos genes, mas a espécie escolhida
para objeto de estudo produz cópias diferenciadas desses genes. Além disso, a
reconstrução filogenética revelou que em L.
amazonensis e L. mexicana(ambas
do complexo mexicana) algumas amastinas evoluíram de forma diferente.
De acordo com a professora, a maior expressão de amastina
observada em Trypanosoma
cruzi, por exemplo, faz com que esse parasita se multiplique muito mais
rápido no seu vacúolo parasitóforo intracelular e, também, se diferencie
rapidamente, assumindo forma infectiva que escapa do ataque da resposta imune.
“Embora
isto não tenha sido demonstrado para a leishmania, nossa equipe acredita que a
amastina poderia ser uma das moléculas responsáveis pela formação desses
vacúolos grandes e, consequentemente, pela evasão da resposta imune, mas isso
precisa ser estudado experimentalmente”, pondera Diana Bahia.
Interações
Os autores do estudo sugerem que fatores secretados por leishmania poderiam
imitar fatores de mamíferos, perturbando, portanto, as interações de proteínas
hospedeiras com nativas. Para identificar as possíveis interações de fatores do
hospedeiro mamífero com os dos parasitas, construíram redes híbridas de
interação de proteínas, os interactomas. O grupo percebeu que a L. amazonensis
secreta uma heat-shock protein, ou HSP-70, que se liga a receptores de
membrana, o Toll-like receptor 9 (TLR-9), importante regulador imunológico.
“Nossa
hipótese é de que a secreção dessa proteína perturba o metabolismo do
hospedeiro, promovendo a ligação com o TLR-9, encontrado em vesículas e
vacúolos, o que desencadearia respostas favoráveis ao estabelecimento
intracelular do parasita. Esses eventos podem estar envolvidos na sobrevivência
do parasita em vacúolos dentro do hospedeiro, já que não seria alcançado pelo
seu sistema imune”, esclarece.
O genoma sequenciado da Leishmania
amazonensis está
depositado em bancos de dados nacionais e em breve integrará o TriTrypDB, banco
internacional dos tripanossomatídeos. A partir dessas informações, públicas,
qualquer pesquisador pode dar prosseguimento ao estudo tanto das hipóteses
apontadas pelo grupo quanto em outras áreas. Particularmente, Diana Bahia tem
interesse em se aprofundar no papel das amastinas específicas de L. amazonensis e da HSP-70.
“Pretendo
clonar essas proteí-nas, transfectar parasitas para obter uma superexpressão
delas e infectar macrófagos ou clonar tais proteínas em leishmania de espécie
formadora de vacúolos apertados e observar o efeito biológico consequente”,
informa a professora, destacando a importância de se entender o papel de tais
proteínas na biogênese do vacúolo largo.
A doença
A leishmaniose cutânea difusa (LCD), também conhecida como leishmaniose cutânea
anérgica difusa (LCAD) ou leishmaniose anérgica hansenoide (LAH), foi descrita
pela primeira vez na Amazônia brasileira, mais precisamente no estado do Pará,
que relatou os primeiros achados clínicos sobre forma rara da leishmaniose
tegumentar, ressaltando a natureza das lesões queloidianas. Em alguns casos, as
lesões regridem espontaneamente, mas atualmente não há cura para a doença, que
se apresenta mais gravemente em crianças.
Pesquisas revelam que L.
amazonensis e L. mexicana vieram de organismos silvestres que
apresentavam lesões. Segundo Diana Bahia, esses parasitas eram organismos de
vida livre que, para se protegerem, começaram a parasitar outros seres,
incluindo talvez amebas, obtendo vantagens evolutivas para se adaptarem a
humanos e animais. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) indicam que boa
parte dos mamíferos reservatórios e de humanos infectados pela L. amazonensis não apresentam lesões.
“É possível que a L.
amazonensis seja uma
dessas espécies que obtiveram vantagens em uma vida intracelular para viver
silenciosamente no hospedeiro”, diz Diana. “Filosoficamente, isto representaria
uma hipótese de troca (trade off hypothesis),
teoria segundo a qual os parasitas tendem a evoluir de modo a viver em
homeostase com o hospedeiro, pois a morte deste último é, em última análise,
prejudicial à vida do parasita intracelular, que poderia desaparecer
completamente. Acredita-se que os parasitas que permitem grande sobrevida aos
hospedeiros são mais bem-sucedidos na sua reprodução e dispersão”, conclui a
pesquisadora.
Artigo: REAL,
F. et al. The genome sequence of Leishmania
(Leishmania) amazonensis: functional annotation and extended analysis of gene
models
Financiamento: Fapesp
e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
Autores: Diana
Bahia, do Departamento de Biologia Geral (ICB-UFMG), coordenou o projeto em
colaboração com pesquisadores do Departamento de Microbiologia, Imunologia e
Parasitologia da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) – incluindo o primeiro
autor, Fernando Real – e com grupos do Laboratório Nacional de Biociências
(LNBio) e do Laboratório de Genômica e Expressão da Universidade Estadual de
Campinas (que abriga os dois outros primeiros coautores, Ramon Oliveira Vidal e
Marcelo Falsarella Carazzolle)
Onde encontrar o genoma
O Leishmania (Leishmania) amazonensis Genome Database está disponível neste endereço. As
sequências foram depositadas no NCBI, sob o
acesso APNT00000000 (SUBID SUB120161, BioProject PRJNA173202).
Fonte: Universidade Federal de Minas Gerais