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terça-feira, 2 de agosto de 2011

O maior dos caçadores de besouros

Unesp Ciência
por Redação em 15/07/2011

Monumental biografia em dois volumes reconstrói em detalhes o mundo pacato, mas
revolucionário, de Charles Darwin
Go-it-Charlie-edited

Por Reinaldo José Lopes*

É difícil de acreditar, mas Charles Robert Darwin (1809-1882), a despeito da barba monumental e da careca que se tornaram sua marca registrada na velhice, também foi menino um dia.
Aliás, um molecão, mesmo quando já estava cursando a segunda faculdade (depois do fracasso no curso de medicina em Edimburgo). Dos registros visuais do naturalista que chegaram até nós, provavelmente nenhum é mais inaudito do que o desenho a caneta, feito por um amigo quando Darwin estava na Universidade de Cambridge, ilustração que parece ter escapado de um livro de Monteiro Lobato para crianças. De cartola na cabeça, o rapaz está montado num besouro do tamanho de um potrinho. A legenda diz “Go Charlie!” (o que deixa o leitor seriamente tentado a traduzi-la como “Vai nessa, Charlie!).
Explica-se: a paixão por capturar, colecionar e catalogar besouros foi uma das mais intensas da juventude de Darwin, como conta a monumental biografia do naturalista, da autoria de Janet Browne, recém-lançada no Brasil pela Editora Unesp (o original é de 1995) em duas partes. A primeira ganhou o título de Viajando, em óbvia alusão à histórica jornada do britânico a bordo do navio Beagle. Já a segunda se chama O poder do lugar – nesse caso, a estrela é a célebre Down House, lar pessoal e científico do cientista.
Em português, os volumes de Browne, historiadora da ciência britânica que hoje leciona na Universidade Harvard, chegam em dimensões intimidadoras: 1.512 páginas em letra miúda (só uma pequena parcela disso corresponde a notas e referências bibliográficas). Mas vale imensamente a pena encarar os catataus. Apesar da embalagem que assusta, Browne está longe de escrever só para iniciados.
Aliás, é provável que justamente o texto esparramado seja o responsável pela experiência prazerosa que é a leitura dos volumes. São livros para se ler com tempo, saboreando os detalhes da vida vitoriana e da personalidade de Darwin e de seu círculo, de preferência com a ajuda das mesmas doses generosas de ócio que a classe social do naturalista concedia a seus membros no século 19.
Outros livros proclamaram que o britânico foi “um evolucionista atormentado” (na biografia de Adrian Desmond e James Moore); há o que fala das “dúvidas do senhor Darwin” (o de David Quammen). O sujeito que revolucionou a compreensão que a humanidade tinha sobre a natureza da vida na Terra tinha de ser alguém torturado, certo?
Browne não tem muita paciência para isso, o que sem dúvida funciona como uma lufada de ar fresco. O Darwin que ela pinta “foi a pessoa menos espetacular de todos os tempos, um homem conhecido por seus contemporâneos como um trabalhador metódico e quieto, avesso à ostentação, completamente convencional em seu comportamento, modesto e despretensioso quanto a seus resultados”.
De fato, embora o protagonista da biografia tenha sua cota de demônios internos, eles ficam em segundo plano. É fácil gostar do Darwin retratado por Browne – é o tipo da personalidade que classificaríamos como “gente boa” em linguagem corrente, pacato, afável, apreciador de boa conversa, homem de família. E, ao contar sua história, a pesquisadora britânica consegue uma alquimia bastante precisa entre pano de fundo socioeconômico e história pessoal, passando sem muito esforço de um para outro.
Um belo exemplo disso é o aguçado retrato da pequena nobreza rural da Inglaterra, o habitat natural da família Darwin havia gerações. Do ponto de vista ancestral, já existia a tensão que depois caracterizaria a vida do próprio Darwin: um longo duelo entre gosto pela revolução e respeitabilidade, digamos.
Isso começou com o formidável (em especial do ponto de vista da pança) avô do naturalista, Erasmus Darwin, ele próprio um evolucionista genial, embora bem mais fraquinho que o neto do ponto de vista teórico, dado a expor sua visão materialista da vida em versos muito populares na Inglaterra do fim do século 18. Fascinado por sexo, o velho Erasmus era fonte de embaraço para seu circunspecto filho Robert, o pai de Darwin, que provavelmente ensinou muito sobre discrição ao naturalista.
Também impressiona (do ponto de vista da cultura universitária moderna) a pouca necessidade de instrução formal de Darwin para se tornar o biólogo (quando ainda nem havia biólogos) mais importante de todos os tempos. Num mundo em que a especialização e a profundidade do que se sabia sobre os seres vivos eram ordens de magnitude menores, Darwin realizou todos os seus grandes feitos fazendo um único curso de história natural durante toda a sua passagem por Cambridge.
Mas a impressão mais forte deixada pelos anos de formação do naturalista é a de que o interesse pelo mundo vivo sempre começa do mesmo jeito, seja o cenário desse princípio as sebes e campos da Inglaterra vitoriana ou uma chácara do interior de São Paulo: a tendência de meninos e meninas a andarem pelo mato de olho no chão, escarafunchando riachos e erguendo pedras, em busca dos segredos de besouros, girinos e borboletas. Foi assim com Darwin, assim é, e será, com incontáveis biólogos.

* Reinaldo José Lopes é editor de Ciência e Saúde na Folha de S. Paulo e autor de Além de Darwin (editora Globo)

TRECHO
“Surpreso, Darwin refletiu sobre essas informações. Se cada ilha tinha suas próprias aves, como sugeria Gould, e o arquipélago como um todo tinha uma coleção própria de gêneros, as especulações que fizera a bordo do Beagle sobre a instabilidade das espécies seriam mais precisas do que pensara. A princípio, ele tinha pensado que se tratava de variedades, mas agora Gould afirmava que não era o caso. Talvez pudessem ser uma coisa ou outra, dependendo do ponto de vista. Possivelmente os pássaros teriam se diversificado numa série de formas por meio do isolamento geográfico, cada um numa ilhota separada. Talvez não houvesse diferença lógica entre variantes geográficas e espécies. Será que isso sugeria variedades transformando-se em espécies, ou ‘não criação’, como ele desajeitadamente denominou o fenômeno?
“De toda maneira, as evidências de Darwin eram incertas. Em razão da própria negligência com as etiquetas, um dos problemas mais interessantes da viagem ficou sem solução. Darwin não tinha como literalmente refazer seus passos – aquela viagem não podia ser repetida.”

Charles Darwin
Autor: Janet Browne
Aracati e Editora Unesp
Volume 1 – Viajando
Tradução: Gerson Yamagami,
R$ 98; 776 págs.
Volume 2 – O poder do lugar
Tradução: Otacílio Nunes,
R$ 96; 736 págs.
Resenha publicada na edição de julho,

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